terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Ensinar a pensar

Immanuel Kant
Espera-se que o professor desenvolva no seu aluno, em primeiro lugar, o homem de entendimento, depois, o homem de razão, e, finalmente, o homem de instrução. Este procedimento tem esta vantagem: mesmo que, como acontece habitualmente, o aluno nunca alcance a fase final, terá mesmo assim beneficiado da sua aprendizagem. Terá adquirido experiência e ter-se-á tornado mais inteligente, se não para a escola, pelo menos para a vida. Se invertermos este método, o aluno imita uma espécie de razão, ainda antes de o seu entendimento se ter desenvolvido. Terá uma ciência emprestada que usa não como algo que, por assim dizer, cresceu nele, mas como algo que lhe foi dependurado. A aptidão intelectual é tão infrutífera como sempre foi. Mas ao mesmo tempo foi corrompida num grau muitíssimo maior pela ilusão de sabedoria. É por esta razão que não é infrequente deparar-se-nos homens de instrução (estritamente falando, pessoas que têm estudos) que mostram pouco entendimento. É por esta razão, também, que as academias enviam para o mundo mais pessoas com as suas cabeças cheias de inanidades do que qualquer outra instituição pública. [...] Em suma, o entendimento não deve aprender pensamentos mas a pensar. Deve ser conduzido, se assim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de maneira a que no futuro seja capaz de caminhar por si, e sem tropeçar. A natureza peculiar da própria filosofia exige um método de ensino assim. Mas visto que a filosofia é, estritamente falando, uma ocupação apenas para aqueles que já atingiram a maturidade, não é de espantar que se levantem dificuldades quando se tenta adaptá-la às capacidades menos exercitadas dos jovens. O jovem que completou a sua instrução escolar habituou-se a aprender. Agora pensa que vai aprender filosofia. Mas isso é impossível, pois agora deve aprender a filosofar. [...] Para que pudes-se aprender filosofia teria de começar por já haver uma filosofia. Teria de ser possível apresentar um livro e dizer: «Veja-se, aqui há sabedoria, aqui há conhecimento em que podemos confiar. Se aprenderem a entendê-lo e a compreendê-lo, se fizerem dele as vossas fundações e se construírem com base nele daqui para a frente, serão filósofos». Até me mostrarem tal livro de filosofia, um livro a que eu possa apelar, [...] permito-me fazer o seguinte comentário: estaríamos a trair a confiança que o público nos dispensa se, em vez de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado e em vez de os educar de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva própria mais amadurecida, se em vez disso os enganássemos com uma filosofia alegadamente já acabada e cogitada por outras pessoas em seu benefício. Tal pretensão criaria a ilusão de ciência. Essa ilusão só em certos lugares e entre certas pessoas é aceite como moeda legítima. Contudo, em todos os outros lugares é rejeitada como moeda falsa. O método de instrução próprio da filosofia é zetético, como o disseram alguns filósofos da antiguidade (de zhtein). Por outras palavras, o método da filosofia é o método da investigação. Só quando a razão já adquiriu mais prática, e apenas em algumas áreas, é que este método se torna dogmático, isto é, decisivo. Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a nossa instrução não deve ser considerado o paradigma do juízo. Ao invés, deve ser encarado como uma ocasião para cada um de nós formar um juízo sobre ele, e até mesmo, na verdade, contra ele. O que o aluno realmente procura é proficiência no método de reflectir e fazer inferências por si. E só essa proficiência lhe pode ser útil. Quanto ao conhecimento positivo que ele poderá talvez vir a adquirir ao mesmo tempo — isso terá de ser considerado uma consequência acidental. Para que a colheita de tal conhecimento seja abundante, basta que o aluno semeie em si as fecundas raízes deste método.
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Tradução de Desidério Murcho in Revista Critica na Rede.
Texto retirado de «Anúncio do Programa do Semestre de Inverno de 1765-1766» da colectânea de textos Theoretical Philosophy, 1755-1770 (edição de David Walford e Ralf Merbote, Cambridge University Press, 1992), pp. 2:306-7.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Por que ser uma boa pessoa?

Por Alan Dershowitz O superadvogado argumenta que a pessoa verdadeiramente moral é o ateu que se comporta bem

Para a maior parte das pessoas, a pergunta "por que ser bom?", distinta do ato de simplesmente obedecer à lei, é simples: Deus ordena que sejamos bons, porque a Bíblia assim exige, porque as pessoas boas vão para o céu e as más vão para o inferno. A grande maioria deriva sua moralidade da religião, o que não significa dizer que todas as pessoas religiosas sejam morais, ou de bom caráter; longe disso. Mas é fácil entender por que uma pessoa que acredita em um Deus que recompensa e pune deseja ajustar sua conduta aos mandamentos divinos. Uma análise de custo-benefício deveria ser suficiente para persuadir qualquer pessoa crédula de que o custo eterno do inferno pesa mais que qualquer benefício terreno derivado de incorrer na ira de um Deus onipotente e onisciente.

Mesmo os céticos poderiam estar inclinados a eliminar a dúvida em favor da obediência aos comandos religiosos. Pascal asseverou, há mais de trezentos anos atrás: "Você tem de apostar. Não é opcional. Você já está envolvido. Vamos pesar o ganho e a perda de apostar na existência de Deus. Façamos uma estimativa destas duas alternativas. Se ganhar, você ganha tudo. Se perder, não perde nada. Aposte, então, sem hesitação, que Ele existe."

Eu sempre considerei a "Aposta de Pascal" questionável. Se há lucro advindo da crença em Deus, então é preferível um agnóstico honesto que um hipócrita calculista. Professar a fé numa análise custo-benefício significa banalizar a religião. Considere, por exemplo, a decisão de Thomas More de preferir a execução terrena à condenação eterna. Quando o rei dá uma ordem e Deus outra, um crente não tem escolha. More teria, supostamente, se manifestado do seguinte modo: "Este ato do Parlamento é como uma espada com dois gumes, porque se um homem responder de determinado modo, ele comprometerá sua alma; e se responder de outro modo, comprometerá seu corpo."

More seguiu a ordem de Deus e desistiu de sua vida na terra pela promessa de salvação eterna. Por seu martírio - sua bondade -, ele conquistou um lugar de honra entre os santos. Eu realmente nunca entendi porque as pessoas que acreditam firmemente estarem fazendo a vontade de Deus são respeitadas como "boas", até mesmo "heróicas". Para eles, a escolha é uma tática que serve a seus melhores interesses, uma simples conseqüência de uma análise custo-benefício. Thomas More parece ter entendido isso muito melhor que aqueles que o têm reverenciado ao longo dos séculos.

Para uma pessoa que acredita que a alma vive para sempre e o corpo é simplesmente temporário, é uma questão simples escolher o fio da espada que cortará a vida terrena, mas preservará a alma. O Paraíso e o Inferno são para sempre, enquanto a vida na terra, especialmente para um homem da idade de More, dura apenas uns poucos anos. Conseqüentemente, se More realmente acreditava em recompensa e punição após a vida, ele não era um herói. Por escolher a morte em lugar da condenação eterna, ele nada mais fez que demonstrar ter uma crença obstinada. Desistir de uns poucos anos na terra por uma eternidade no céu foi uma troca inteligente, que deveria conceder-lhe um lugar de honra no panteão dos verdadeiros crentes, mas não no panteão dos heróis.

A pergunta básica permanece. Por que é mais nobre a um crente obstinado seguir a ordem de Deus que a ordem do rei, se para esta pessoa Deus é mais poderoso que qualquer rei? Em geral, a submissão à vontade de uma pessoa poderosa não tem sido entendida como especialmente digna de elogios, exceto, claro, pela pessoa poderosa. Thomas More teria se juntado às cruzadas genocidas do século 11 apenas porque Deus e o Papa assim ordenaram? Se tivesse, seria correcto considerá-lo uma boa pessoa?

O problema não se aplica somente aos cristãos. Eu me pergunto por que os Judeus elogiam Abraão por ter aceitado matar seu filho, quando Deus assim o ordenou. Um verdadeiro herói, que acreditasse em um Deus que recompensa e pune, teria resistido a esta ordem injusta e se arriscado à ira divina, da mesma forma que um verdadeiro herói teria recusado a ordem de Deus para assassinar mulheres e crianças "pagãs" durante a barbárie das cruzadas. O verdadeiro herói - a pessoa realmente boa - é o crente que arrisca a eternidade no inferno por se recusar a uma exigência injusta de Deus. O grande rabino do século 18, Levi Isaac de Berdichev, foi um herói assim. Ele levantou um processo religioso contra Deus, e disse a Deus que ele se recusaria a obedecer a qualquer comando divino que colocasse em risco o bem-estar do povo Judeu. Assim fazendo, Levi Isaac pode ter-se arriscado a sofrer punição divina, mas agiu heroicamente. Ele enfrentou um Deus que acreditava ter o poder de puni-lo, mas que ele também acreditava estar agindo injustamente. Ao desafiar a Deus, ele seguia a tradição do heróico Abraão, que argumentou contra a disposição de Deus de sacrificar inocentes por causa de Sodoma. Este exemplo é preferível ao de um Abraão complacente, que de bom grado obedeceu ao injusto comando de Deus para que sacrificasse o inocente Isaque; ou ainda o do submisso Jó, que no fim das contas suplica a Deus que o perdoe por ter duvidado de Sua justiça, depois de Deus ter de fato agido injustamente, matando seus filhos apenas para provar algo ao diabo.

Esta é, pois, uma questão de se julgar a bondade de uma pessoa religiosa que acredita na punição e na recompensa divinas. Os líderes religiosos que escolhem mártires e santos não podem fazê-lo em ambos os casos. Eles não podem declarar que alguém seja um herói e um crente, porque as duas honrarias são logicamente inconsistentes. O crente obstinado é menos um herói por escolher a morte, em detrimento da condenação eterna. O verdadeiro herói é necessariamente um crente menos obstinado. Os verdadeiros heróis são aqueles que encaram a morte por um princípio - digamos, salvar as vidas de outras pessoas - sem qualquer promessa de recompensa.

Somente no caso de More ter sido na verdade um hipócrita, fingindo crer em um vida após a morte, quando abrigasse secretamente a descrença, ele seria merecedor da condição de herói; mas neste caso, claro, lhe seria negada a honra de ter sido um verdadeiro crente e de ter sido honesto.

Há, com certeza, uma posição intermediária. More poderia ter sido alguém que tentou realmente acreditar, mas não podia suprimir a dúvida. Desconfio que muitas pessoas que pensam, hoje, estejam nesta condição. Se este fosse o caso de More, sua decisão de escolher a morte exigia algum grau de risco. Talvez ele estivesse desistindo de um pássaro em sua mão terrena, a saber, o tempo de vida que ainda teria, por dois pássaros em uma árvore celestial, a saber, uma chance em um paraíso possível. Mas isto também seria um cálculo, ainda que mais complexo e probabilístico. (Não estou sugerindo que os mártires religiosos sempre pensem desta maneira, conscientemente, mas certamente eles experimentam este misto de crença, cálculo e ação em algum nível.)

Isto não significa dizer que pessoas crédulas não possam ter realmente morais. É claro que podem. Talvez agissem moralmente sem a promessa de recompensa ou a ameaça de punição. Isto sugere, todavia, que quando a conduta é determinada por promessas e recompensas, é difícil medir sua qualidade moral inerente, distinta de um componente tático. Mas o que dizer de ateus, agnósticos, ou outros indivíduos que tomam decisões morais sem relação a um Deus, ou a uma promessa, ou ameaça referentes à vida após a morte? Por que estas pessoas deveriam ser morais? Por que deveriam desenvolver um bom caráter? Por que não deveriam simplesmente fazer o que é melhor para elas?

Até mesmo a Bíblia fornece um modelo para estas pessoas. O autor do Eclesiastes explicitamente nos diz que ele (ou ela, uma vez que a palavra hebraica original para Eclesiastes é Koheleth, que significa "reunião de mulheres") não acredita em uma vida após a morte. "De tudo tenho visto ao longo de minha vã existência; um homem justo sendo destruído por sua honradez, e um pecador vivendo uma longa vida em razão de sua maldade. O que sucede aos filhos dos homens sucede aos filhos dos animais. Como morre um, assim morre o outro; todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais, porque tudo é vaidade. Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão. Quem pode saber se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra?"

Não é surpresa que o Eclesiastes conclua que "não pode haver coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua recompensa; quem o fará voltar para ver o que será depois dele?" E o Eclesiastes prossegue recomendando o egoísmo hedonista como uma resposta à ausência de vida após a morte: "Eu sei que não há outro bem na vida que ser feliz enquanto se vive. De fato, é presente de Deus que cada homem coma, beba e se alegre com o fruto de seu trabalho." Mas o Eclesiastes está errado. Mesmo que não haja céu ou inferno, há boas razões para que os seres humanos ajam de modo melhor que simplesmente buscar a felicidade. A verdadeira pessoa moral é aquela que faz a coisa certa sem promessa de recompensa ou ameaça de punição - sem uma análise custo-benefício. Fazer algo porque Deus assim o disse não torna uma pessoa moral; simplesmente nos diz que se trata de um crente prudente, semelhante àquele que obedece ao comando de rei secular todo-poderoso. A concordância de Abraão em sacrificar seu filho Isaque porque Deus assim o ordenou não o torna moral; simplesmente mostra que ele era obediente.

Há pessoas demais que abrem mão da responsabilidade moral em função de Deus, como Abraão fez. Com o propósito de discutir o caráter e a moralidade, eu assumirei que não existe um Deus que ordena, recompensa, pune ou intervém. Se isto é verdadeiro ou não, qualquer que seja o significado de verdade no contexto da fé, ainda assim trata-se de um mecanismo heurístico útil, através do qual se pode avaliar o caráter e a moralidade. Assim como Pascal argumentou que a aposta mais prudente é a de depositar seu dinheiro eterno em Deus, é igualmente um constructo útil assumir a não-existência de Deus quando julgamos se uma ação humana deveria ser considerada boa. Há uma história religiosa maravilhosa, sobre um rabino a quem perguntaram se é mais apropriado agir como se Deus não existisse. Ele respondeu: "Sim, pois quando pedirem a você que seja caridoso, você deve sê-lo como se não houvesse Deus a ajudar o objeto da caridade."

Penso que o mesmo se pode dizer da moralidade e do caráter: ao decidir que curso de ação é moral, você deve agir como se não houvesse Deus. Você também deveria agir como se não houvesse ameaça de punição ou recompensa terrena. Você deveria ser uma pessoa de bom caráter porque é certo ser assim.

Eu me lembro de uma charge que descrevia um homem mais velho e casado, abandonado em uma ilha deserta com uma mulher jovem. Ele lhe pede que façam sexo, argumentando que "ninguém saberá." A mulher responde: "eu saberei." O teste de bom caráter do "eu saberei" é útil. Qual seria então o conteúdo do bom caráter em um mundo sem a ameaça de punição divina ou terrena e sem a promessa de recompensa divina ou terrena? Em um mundo como este toda boa ação seria praticada simplesmente porque o agente a considerou boa. O bom caráter, num mundo como este, envolveria encontrar um equilíbrio adequado entre os interesses que estão frequentemente em conflito, tais como os próprios interesses e os dos demais, do presente e do futuro, da família (tribo, raça, gênero, religião, nação, etc.) e de estrangeiros. Desde o começo dos tempos, os homens civilizados lutam para alcançar este meio-termo dourado. O grande Rabino Hillel disse bem ao afirmar: "Se eu não for por mim mesmo, quem será?, mas se eu for só por mim mesmo, quem serei?"

Bom caráter consiste em reconhecer o egoísmo que é inerente a cada um de nós e tentar equilibrá-lo com o altruísmo a que todos nós deveríamos aspirar. É difícil equilibrar a luta, mas nenhuma definição de bondade pode ser completa sem isto. Os advogados, talvez mais que a maioria, precisam de grande força moral, porque seu terreno profissional é eticamente ambíguo e porque a tentação de tomar atalhos morais é bastante grande. Para alguns, esta força moral deriva de crença religiosa; para outros, de um comprometimento filosófico; e para outros ainda, do juramento que fazemos ao sermos admitidos na profissão. Qualquer que seja a origem, a força moral deveria servir como uma constante, a partir da qual os julgamentos profissionais são avaliados.

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Tradução para português do Brasil de Eliana Curado

Universidade Católica de Goiás, Brasil.

Professora de Filosofia Antiga, Filosofia da Arte e Lógica.

Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás.

Alan Dershowitz, in Letters to a Young Lawyer, Basic Books, 2001

domingo, 11 de fevereiro de 2007

O nariz

Por Luis Fernando Veríssimo
Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, só brio, sem opiniões surpreendentes, mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço._ O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos._ Isto o quê?_ Esse nariz._ Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei._ Logo você, papai...Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se._ Tire esse negócio._ Por quê?_ Brincadeira tem hora._ Mas isto não é brincadeira.Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou._ Aonde é que você vai?_ Como, onde é que eu vou? Vou voltar para o consultório._ Mas com esse nariz?_ Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz..._ Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas ( “Logo o senhor, doutor.”), fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas._ Ele enlouqueceu?_ Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. - Nunca vi ele assim.Naquela noite ele tomou seu banho, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar._ Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher._ Vou. Aliás, não vou mais tirar este nariz._ Mas, por quê?_ Por que não?Dormiu logo. A mulher passou a metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço._ Papai..._ Sim, minha filha._ Podemos conversar?_ Claro que podemos._ É sobre esse seu nariz..._ O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?_ Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?_ O nariz é meu e vou continuar a usar._ Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social._ Não tem porque não quer..._ Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?_ Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença._ Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?_ Se não faz diferença, por que não usar?_ Mas, mas..._ Minha filha..._ Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra._ Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho..._ Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele._ Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento do meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar. Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Internacional, tudo como antes. Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?_ É... – disse o psiquiatra. – talvez você tenha razão... _____________________________________
O analista de Bagé. 28. ed. Porto Alegre, L&PM, 1981. p.39-42

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Memnonou ou da sabedoria humana

VOLTAIRE
Memnon concebeu um dia o insensato projeto de ser perfeitamente sábio. Não há homem a quem essa loucura não tenha ocorrido alguma vez. “Para ser bastante sábio, e por conseguinte bastante feliz, – considerou Memnon, – basta não ter paixões; e nada é mais fácil, como se sabe. Antes de tudo, jamais amarei mulher nenhuma:
pois, ao ver uma beleza perfeita, direi comigo mesmo: “Essas faces se enrugarão um dia; esses belos olhos se debruarão de vermelho; esses rijos seios se tornarão flácidos e pendentes; essa linda cabeça perderá os cabelos”. É só olhá-la agora com os olhos com que a verei então, e essa cabeça não há de virar a minha.
Em segundo lugar, serei sóbrio. Por mais que seja tentado pela boa mesa, os vinhos deliciosos, a sedução da sociedade, bastará imaginar as conseqüências dos excessos, a cabeça pesada, o estômago arruinado, a perda da razão, da saúde e do tempo: apenas comerei por necessidade; minha saúde será sempre igual, minhas idéias sempre puras e luminosas. Tudo isso é tão fácil que não há nenhum mérito em consegui-lo. “Depois” – dizia Memnon, – “devo pensar um pouco na minha fortuna. Meus desejos são moderados; meus bens estão solidamente colocados em mãos do recebedor geral das finanças de Nínive; tenho com que viver independentemente; é esse o maior dos bens. Nunca me verei na cruel necessidade de freqüentar a Corte: não invejarei ninguém, e ninguém me invejará.
Eis o que é também bastante fácil. Tenho amigos – continuava ele – e hei de conservá-los, pois nada terão que me disputar. Nunca me indisporei com eles, nem eles comigo. Isso não tem dificuldade alguma”. Tendo assim feito no interior do quarto o seu pequeno plano de sabedoria, Memnon pôs a cabeça à janela. Viu duas mulheres que passeavam debaixo dos plátanos, perto da sua casa. Uma era velha e não aparentava pensar em nada. A outra era jovem, bonita, e parecia muito preocupada. Suspirava, chorava, e com isso não fazia mais que aumentar as suas graças.
O nosso filósofo sentiu-se impressionado, não com a beleza da dama (estava seguro de não se entregar a tais fraquezas), mas com a aflição em que a via. Desceu à rua e abordou a jovem, com a intenção de consolá-la sabiamente. A linda criatura contou-lhe, com o ar mais ingênuo e comovente do mundo, todo o mal que lhe causava um tio que ela não tinha; com que artimanhas lhe roubara ele uns bens que ela jamais possuíra; e tudo o que tinha a temer da sua violência. “O senhor me parece um homem tão avisado – lhe disse ela, – que, se tivesse a bondade de acompanhar-me até em casa e examinar meus negócios, estou certa de que me tiraria do cruel embaraço em que me encontro”. Memnon não hesitou em segui-la para examinar sabiamente os seus negócios e dar-lhe um bom conselho. A dama aflita levou-o para um salão perfumado e fê-lo sentar-se polidamente num largo sofá, onde se mantinham ambos, com as pernas cruzadas, um defrontando o outro. A dama falou baixando os olhos, de onde escapavam lágrimas de vez em quando e que, ao erguerem-se, cruzavam sempre com os olhares do sábio Memnon. As frases dela eram cheias de um enternecimento que redobrava sempre que os dois se olhavam. Memnon tomava os seus negócios extremamente a peito, e de momento a momento sentia maior desejo de socorrer a uma criatura tão honesta e tão desgraçada. No calor da conversação, deixaram insensivelmente, de estar um defronte ao outro. As suas pernas descruzaram-se. Memnon aconselhou-a de tão perto, deu-lhe conselhos tão ternos, que nenhum dos dois podia falar de negócios, e não sabiam mais onde se achavam. E, como se achassem em tal ponto, eis que chega o tio, como era de prever; estava armado da cabeça aos pés; e a primeira coisa que disse foi que ia matar, como de razão, o sábio Memnon e a sobrinha; a última que lhe escapou foi que ainda poderia perdoar aquilo tudo mediante considerável quantia. Memnon foi obrigado a entregar tudo o que tinha consigo. Davam-se por muito felizes, naquele tempo, em livrar-se tão modicamente; a América ainda não tinha sido descoberta e as damas aflitas não eram tão perigosas como hoje.
Memnon, envergonhado e desesperado, voltou para casa: encontrou um bilhete que o convidava para jantar com alguns amigos íntimos. “Se fico sozinho em casa – considerava ele, – terei o espírito preocupado com a minha triste aventura, não poderei comer, e acabo adoecendo. E melhor ir fazer, com meus íntimos, uma refeiçãozinha frugal. Esquecerei, na doçura do seu convívio, a tolice que fiz esta manhã”. Comparece à reunião; acham-no um pouco taciturno. Obrigam-no a beber para dissipar a tristeza. Um pouco de vinho tomado com moderação é um remédio para a alma e o corpo. E assim que pensa o sábio Memnon; e embebeda-se. Depois propõem-lhe uma partida. Um joguinho entre amigos é um passatempo honesto. Ele joga; ganham-lhe tudo o que tem na bolsa, e quatro vezes mais sob palavra. No meio do jogo surge uma disputa; exaltam-se os ânimos: um de seus amigos íntimos lança-lhe à cara um copo de dados e lhe vasa um olho. Carregam para casa o sábio Memnon, embriagado, sem dinheiro, e com um olho de menos. Cozinha um pouco o seu vinho; e, logo que se vê com a cabeça mais livre, manda o criado conseguir dinheiro com o recebedor geral das finanças de Nínive, a fim de pagar seus íntimos amigos: dizem-lhe que seu credor, pela manhã, abrira falência fraudulenta, deixando cem famílias em pânico. Memnon, consternado, dirige-se à Corte, com um emplastro no olho e um memorial na mão, para pedir justiça ao rei contra o bancarroteiro. Encontra num salão várias damas que usavam todas, comodamente, umas saias de vinte e quatro pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia um pouco, exclamou, olhando-o de soslaio: “Ai, que horror!” Outra, que o conhecia mais, lhe disse: “Boa tarde, senhor Memnon. Verdadeiramente encantada de vê-lo, senhor Memnon. A propósito, senhor Memnon: como foi que perdeu um olho?” E passou adiante sem esperar resposta. Memnon ocultou-se a um canto, aguardando o momento em que se pudesse lançar aos pés do rei. Chegado esse momento, beijou três vezes o chão e apresentou seu memorial. Sua Graciosa Majestade o recebeu muito favoravelmente e entregou o memorial a um dos sátrapas, para informar. O sátrapa chama Memnon à parte e diz-lhe com ar altivo, rindo amargamente: “Belo caolho me saiu você, dirigindo-se ao rei e não a mim! E ainda por cima ousa pedir justiça contra um honesto bancarroteiro a quem honro com a minha proteção e que é sobrinho de uma camareira de minha amante. Quer saber de uma coisa? Abandone esse negócio, meu amigo, se pretende conservar o olho que lhe resta. Memnon, tendo assim renunciado, pela manhã, às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo, a qualquer discussão, e sobretudo à Corte fora, antes de chegar a noite, enganado e roubado por uma bela dama, embriagara-se, jogara, metera-se numa disputa, perdera um olho e recorrera à Corte, onde haviam zombado dele. Petrificado de espanto, transido de dor, regressa com a morte no coração. Quer entrar em casa: ali encontra oficiais de justiça que o despejavam em nome dos credores. Detém-se quase desmaiado sob um plátano; ali se encontra com a bela dama da manhã, a passear com o querido tio e que explodiu de riso ao ver Memnon com o seu emplastro. Tombou a noite; Memnon deitou-se na palha junto dos muros de sua casa. Veio-lhe a febre; assim adormeceu; e um espírito celeste lhe apareceu em sonhos. Era todo resplendente de luz. Tinha seis belas asas, mas nem pés, nem cabeça, nem cauda, e não se assemelhava a coisa alguma. — Quem és tu? – lhe diz Memnon. — O teu bom gênio – respondeu-lhe o outro. — Devolve-me então o meu olho, a minha saúde, o meu dinheiro, a minha sabedoria – pede-lhe Memnon.
Em seguida contou-lhe como perdera tudo aquilo em um único dia. — Eis aí aventuras que nunca nos acontecem no mundo em que habitamos – observa o espírito. — E em que mundo habitas? – indaga o infeliz. — A minha pátria fica a quinhentos milhões de léguas do sol, numa pequena estréia perto de Sírio, que tu vês daqui. — Que bela terra! – exclamou Memnon. – Quer dizer que lá não há espertalhonas que enganem um pobre homem, nem amigos íntimos que lhe ganhem o dinheiro e lhe furem um olho, nem bancarroteiros, nem sátrapas que zombem da gente, recusando-nos justiça? — Não – respondeu o habitante da estrela, – nada disso. Nunca somos enganados pelas mulheres, porque não as temos; não nos entregamos a excessos de mesa, porque não comemos; não temos bancarroteiros, porque não existe entre nós nem ouro nem prata; não nos podem furar os olhos, porque não temos corpos à maneira dos vossos; e os sátrapas nunca nos fazem injustiça, porque na nossa estrela todos são iguais. — Sem mulher e sem dinheiro – disse Memnon, – como passam então o tempo? — A vigiar – respondeu o gênio – os outros globos que nos são confiados; e eu vim para consolar-te. — Ah! – suspirava Memnon. – Por que não vieste na noite passada, para impedir-me de cometer tantas loucuras? — Eu estava junto de Assan, teu irmão mais velho – respondeu o ente celeste. – Ele é mais digno de lástima que tu. Sua Graciosa Majestade o Rei das Índias, em cuja Corte tem a honra de servir, mandou-lhe vazar os dois olhos, devido a uma pequena indiscrição, e Assan acha-se atualmente num calabouço, com ferros nos pulsos e tornozelos. — Mas que adianta ter um gênio na família, para que, de dois irmãos, um esteja caolho, o outro cego, um nas palhas, o outro na prisão? — A tua sorte mudará – tornou o animal da estrela. – É verdade que serás sempre caolho; – mas, afora isso, ainda hás de ser bastante feliz, contanto que não faças o tolo projeto de ser perfeitamente sábio. — É então uma coisa impossível de conseguir? – exclamou Memnon, suspirando. — Tão impossível – replicou o outro – como ser perfeitamente hábil, perfeitamente forte, perfeitamente poderoso, perfeitamente feliz. Nós próprios estamos muito longe disso. Há um globo em tais condições; mas, nos cem milhões de mundos que estão esparsos pela imensidade, tudo se encadeia por gradações. Tem-se menos sabedoria e prazer no segundo que no primeiro, menos no terceiro que no segundo. E assim até o último, onde todos são completamente loucos. — Receio muito – disse Memnon – que este nosso pequeno globo terráqueo seja precisamente o hospício do universo de que me fazes a honra de falar. — Não tanto – respondeu o espírito, – mas aproxima-se: tudo está no seu lugar. — Ah! – exclamou Memnon. – Bem se vê que certos poetas, certos filósofos, não têm razão nenhuma em dizer que tudo está bem. — Pelo contrário, têm toda a razão – retrucou o filósofo das alturas, – levando-se em conta o arranjo do universo inteiro. — Ah! só acreditarei nisso – replicou o pobre Memnon quando não for mais caolho.