sábado, 10 de fevereiro de 2007

Memnonou ou da sabedoria humana

VOLTAIRE
Memnon concebeu um dia o insensato projeto de ser perfeitamente sábio. Não há homem a quem essa loucura não tenha ocorrido alguma vez. “Para ser bastante sábio, e por conseguinte bastante feliz, – considerou Memnon, – basta não ter paixões; e nada é mais fácil, como se sabe. Antes de tudo, jamais amarei mulher nenhuma:
pois, ao ver uma beleza perfeita, direi comigo mesmo: “Essas faces se enrugarão um dia; esses belos olhos se debruarão de vermelho; esses rijos seios se tornarão flácidos e pendentes; essa linda cabeça perderá os cabelos”. É só olhá-la agora com os olhos com que a verei então, e essa cabeça não há de virar a minha.
Em segundo lugar, serei sóbrio. Por mais que seja tentado pela boa mesa, os vinhos deliciosos, a sedução da sociedade, bastará imaginar as conseqüências dos excessos, a cabeça pesada, o estômago arruinado, a perda da razão, da saúde e do tempo: apenas comerei por necessidade; minha saúde será sempre igual, minhas idéias sempre puras e luminosas. Tudo isso é tão fácil que não há nenhum mérito em consegui-lo. “Depois” – dizia Memnon, – “devo pensar um pouco na minha fortuna. Meus desejos são moderados; meus bens estão solidamente colocados em mãos do recebedor geral das finanças de Nínive; tenho com que viver independentemente; é esse o maior dos bens. Nunca me verei na cruel necessidade de freqüentar a Corte: não invejarei ninguém, e ninguém me invejará.
Eis o que é também bastante fácil. Tenho amigos – continuava ele – e hei de conservá-los, pois nada terão que me disputar. Nunca me indisporei com eles, nem eles comigo. Isso não tem dificuldade alguma”. Tendo assim feito no interior do quarto o seu pequeno plano de sabedoria, Memnon pôs a cabeça à janela. Viu duas mulheres que passeavam debaixo dos plátanos, perto da sua casa. Uma era velha e não aparentava pensar em nada. A outra era jovem, bonita, e parecia muito preocupada. Suspirava, chorava, e com isso não fazia mais que aumentar as suas graças.
O nosso filósofo sentiu-se impressionado, não com a beleza da dama (estava seguro de não se entregar a tais fraquezas), mas com a aflição em que a via. Desceu à rua e abordou a jovem, com a intenção de consolá-la sabiamente. A linda criatura contou-lhe, com o ar mais ingênuo e comovente do mundo, todo o mal que lhe causava um tio que ela não tinha; com que artimanhas lhe roubara ele uns bens que ela jamais possuíra; e tudo o que tinha a temer da sua violência. “O senhor me parece um homem tão avisado – lhe disse ela, – que, se tivesse a bondade de acompanhar-me até em casa e examinar meus negócios, estou certa de que me tiraria do cruel embaraço em que me encontro”. Memnon não hesitou em segui-la para examinar sabiamente os seus negócios e dar-lhe um bom conselho. A dama aflita levou-o para um salão perfumado e fê-lo sentar-se polidamente num largo sofá, onde se mantinham ambos, com as pernas cruzadas, um defrontando o outro. A dama falou baixando os olhos, de onde escapavam lágrimas de vez em quando e que, ao erguerem-se, cruzavam sempre com os olhares do sábio Memnon. As frases dela eram cheias de um enternecimento que redobrava sempre que os dois se olhavam. Memnon tomava os seus negócios extremamente a peito, e de momento a momento sentia maior desejo de socorrer a uma criatura tão honesta e tão desgraçada. No calor da conversação, deixaram insensivelmente, de estar um defronte ao outro. As suas pernas descruzaram-se. Memnon aconselhou-a de tão perto, deu-lhe conselhos tão ternos, que nenhum dos dois podia falar de negócios, e não sabiam mais onde se achavam. E, como se achassem em tal ponto, eis que chega o tio, como era de prever; estava armado da cabeça aos pés; e a primeira coisa que disse foi que ia matar, como de razão, o sábio Memnon e a sobrinha; a última que lhe escapou foi que ainda poderia perdoar aquilo tudo mediante considerável quantia. Memnon foi obrigado a entregar tudo o que tinha consigo. Davam-se por muito felizes, naquele tempo, em livrar-se tão modicamente; a América ainda não tinha sido descoberta e as damas aflitas não eram tão perigosas como hoje.
Memnon, envergonhado e desesperado, voltou para casa: encontrou um bilhete que o convidava para jantar com alguns amigos íntimos. “Se fico sozinho em casa – considerava ele, – terei o espírito preocupado com a minha triste aventura, não poderei comer, e acabo adoecendo. E melhor ir fazer, com meus íntimos, uma refeiçãozinha frugal. Esquecerei, na doçura do seu convívio, a tolice que fiz esta manhã”. Comparece à reunião; acham-no um pouco taciturno. Obrigam-no a beber para dissipar a tristeza. Um pouco de vinho tomado com moderação é um remédio para a alma e o corpo. E assim que pensa o sábio Memnon; e embebeda-se. Depois propõem-lhe uma partida. Um joguinho entre amigos é um passatempo honesto. Ele joga; ganham-lhe tudo o que tem na bolsa, e quatro vezes mais sob palavra. No meio do jogo surge uma disputa; exaltam-se os ânimos: um de seus amigos íntimos lança-lhe à cara um copo de dados e lhe vasa um olho. Carregam para casa o sábio Memnon, embriagado, sem dinheiro, e com um olho de menos. Cozinha um pouco o seu vinho; e, logo que se vê com a cabeça mais livre, manda o criado conseguir dinheiro com o recebedor geral das finanças de Nínive, a fim de pagar seus íntimos amigos: dizem-lhe que seu credor, pela manhã, abrira falência fraudulenta, deixando cem famílias em pânico. Memnon, consternado, dirige-se à Corte, com um emplastro no olho e um memorial na mão, para pedir justiça ao rei contra o bancarroteiro. Encontra num salão várias damas que usavam todas, comodamente, umas saias de vinte e quatro pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia um pouco, exclamou, olhando-o de soslaio: “Ai, que horror!” Outra, que o conhecia mais, lhe disse: “Boa tarde, senhor Memnon. Verdadeiramente encantada de vê-lo, senhor Memnon. A propósito, senhor Memnon: como foi que perdeu um olho?” E passou adiante sem esperar resposta. Memnon ocultou-se a um canto, aguardando o momento em que se pudesse lançar aos pés do rei. Chegado esse momento, beijou três vezes o chão e apresentou seu memorial. Sua Graciosa Majestade o recebeu muito favoravelmente e entregou o memorial a um dos sátrapas, para informar. O sátrapa chama Memnon à parte e diz-lhe com ar altivo, rindo amargamente: “Belo caolho me saiu você, dirigindo-se ao rei e não a mim! E ainda por cima ousa pedir justiça contra um honesto bancarroteiro a quem honro com a minha proteção e que é sobrinho de uma camareira de minha amante. Quer saber de uma coisa? Abandone esse negócio, meu amigo, se pretende conservar o olho que lhe resta. Memnon, tendo assim renunciado, pela manhã, às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo, a qualquer discussão, e sobretudo à Corte fora, antes de chegar a noite, enganado e roubado por uma bela dama, embriagara-se, jogara, metera-se numa disputa, perdera um olho e recorrera à Corte, onde haviam zombado dele. Petrificado de espanto, transido de dor, regressa com a morte no coração. Quer entrar em casa: ali encontra oficiais de justiça que o despejavam em nome dos credores. Detém-se quase desmaiado sob um plátano; ali se encontra com a bela dama da manhã, a passear com o querido tio e que explodiu de riso ao ver Memnon com o seu emplastro. Tombou a noite; Memnon deitou-se na palha junto dos muros de sua casa. Veio-lhe a febre; assim adormeceu; e um espírito celeste lhe apareceu em sonhos. Era todo resplendente de luz. Tinha seis belas asas, mas nem pés, nem cabeça, nem cauda, e não se assemelhava a coisa alguma. — Quem és tu? – lhe diz Memnon. — O teu bom gênio – respondeu-lhe o outro. — Devolve-me então o meu olho, a minha saúde, o meu dinheiro, a minha sabedoria – pede-lhe Memnon.
Em seguida contou-lhe como perdera tudo aquilo em um único dia. — Eis aí aventuras que nunca nos acontecem no mundo em que habitamos – observa o espírito. — E em que mundo habitas? – indaga o infeliz. — A minha pátria fica a quinhentos milhões de léguas do sol, numa pequena estréia perto de Sírio, que tu vês daqui. — Que bela terra! – exclamou Memnon. – Quer dizer que lá não há espertalhonas que enganem um pobre homem, nem amigos íntimos que lhe ganhem o dinheiro e lhe furem um olho, nem bancarroteiros, nem sátrapas que zombem da gente, recusando-nos justiça? — Não – respondeu o habitante da estrela, – nada disso. Nunca somos enganados pelas mulheres, porque não as temos; não nos entregamos a excessos de mesa, porque não comemos; não temos bancarroteiros, porque não existe entre nós nem ouro nem prata; não nos podem furar os olhos, porque não temos corpos à maneira dos vossos; e os sátrapas nunca nos fazem injustiça, porque na nossa estrela todos são iguais. — Sem mulher e sem dinheiro – disse Memnon, – como passam então o tempo? — A vigiar – respondeu o gênio – os outros globos que nos são confiados; e eu vim para consolar-te. — Ah! – suspirava Memnon. – Por que não vieste na noite passada, para impedir-me de cometer tantas loucuras? — Eu estava junto de Assan, teu irmão mais velho – respondeu o ente celeste. – Ele é mais digno de lástima que tu. Sua Graciosa Majestade o Rei das Índias, em cuja Corte tem a honra de servir, mandou-lhe vazar os dois olhos, devido a uma pequena indiscrição, e Assan acha-se atualmente num calabouço, com ferros nos pulsos e tornozelos. — Mas que adianta ter um gênio na família, para que, de dois irmãos, um esteja caolho, o outro cego, um nas palhas, o outro na prisão? — A tua sorte mudará – tornou o animal da estrela. – É verdade que serás sempre caolho; – mas, afora isso, ainda hás de ser bastante feliz, contanto que não faças o tolo projeto de ser perfeitamente sábio. — É então uma coisa impossível de conseguir? – exclamou Memnon, suspirando. — Tão impossível – replicou o outro – como ser perfeitamente hábil, perfeitamente forte, perfeitamente poderoso, perfeitamente feliz. Nós próprios estamos muito longe disso. Há um globo em tais condições; mas, nos cem milhões de mundos que estão esparsos pela imensidade, tudo se encadeia por gradações. Tem-se menos sabedoria e prazer no segundo que no primeiro, menos no terceiro que no segundo. E assim até o último, onde todos são completamente loucos. — Receio muito – disse Memnon – que este nosso pequeno globo terráqueo seja precisamente o hospício do universo de que me fazes a honra de falar. — Não tanto – respondeu o espírito, – mas aproxima-se: tudo está no seu lugar. — Ah! – exclamou Memnon. – Bem se vê que certos poetas, certos filósofos, não têm razão nenhuma em dizer que tudo está bem. — Pelo contrário, têm toda a razão – retrucou o filósofo das alturas, – levando-se em conta o arranjo do universo inteiro. — Ah! só acreditarei nisso – replicou o pobre Memnon quando não for mais caolho.

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